quarta-feira, 1 de outubro de 2014

IV


O mundo material que emergia no seu campo de visão era como que uma expressão directa do seu íntimo mundo mental - da "sua" consciência - tanto que este, tal como os seus pensamentos e desejos, permanecia em constante mutação.

K.
(com uma voz que ecoava em pano de fundo, ressoando por todo e qualquer lado e tornando a sua origem inplausível  de ser identificada numa localização específica: era a voz da omnipresença, o mais aproximado à sintonia divina que homem algum teve a permissão de captar) 
 A mente não pode ser separada do corpo, assim como o espírito não pode ser isolado da matéria: são ambos distintas faces da manifestação de Una mesma Inteligência. Essa universal.
Hoje em dia os homens parecem crescer com a tendência materialista de procurar nos prazeres mundanos o seu antídoto (pseudo-)espiritual; confundindo prazer com felicidade, possessão com completude, e acabando desiludidos com o vazio que só pode restar numa casa atulhada de coisas supérfluas cobertas de espessas camadas de pó como consequência de negligência doméstica.
Foram-me dados a conhecer, no entanto, homens que, por seu lado, nada queriam com o mundo terreno e renunciavam a tudo o que consideravam "mundano" prescindível à mais modesta das existências, pois consideravam todo o conteúdo dessa dimensão da realidade algo corrompido, impuro e de natureza "anti-espiritual"; acabando por, depois de tanta pretensão para atingir o lendário "Reino dos Céus", viver sem nunca ter desfrutado daquilo que a vida tem para oferecer e terminando por morrer com a impressão, que logo se torna certeza, de nunca ter realmente vivido.

E.
(que ouvira o bicharoco com atenção e espanto)
No secundário, um professor meu lançou uma questão à qual ninguém soube responder coerentemente: "Quanto da matéria é espírito, e vice versa?", evocando um poema de Álvaro de Campos em que o heterónimo pessoano faz apologia à tese: "a melhor maneira de viajar é sentir".

K.
Não será o espírito superior à matéria, essa dimensão "mundana" da realidade? "O espírito pertence ao Reino dos Céus - é etéreo e puro", afirmam os devotos da ascensão espiritual. "O espírito é incorruptível. A matéria está condenada a apodrecer, ruir, deteriorar-se, entregando-se às violações características da acção do tempo", no silêncio fatal do seu passar - acrescento eu. Ou serão antes duas dimensões complementares e indissociáveis da Realidade única? Podemos sintetizar uma, em isolamento face à outra, como se de substâncias de naturezas completamente distintas se tratassem, participantes em teias de fenómenos que nenhuma ligação mantêm entre si? Claro que não. A matéria está contida no espírito tanto quanto o espírito está contido na matéria: são formas de manifestação qualitativamente diferentes da mesma Entidade.

E.
Qual entidade?

K.
Que pergunta desnecessária... Existe apenas uma Entidade.

E.
Acho que entendi o alcance das suas palavras. Na minha terra chamam-lhe "Deus" (eu não lhe chamo coisa nenhuma, pois ele nunca se me apresentou).

K.
Muahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahah...
(o riso maléfico mais celestial que alguma ouvira)

...E aquele universo alucinatório desfez-se.

(...)

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